RETRATOS?

O retrato é um recorte cada dia mais irreal da realidade. Não digo apenas porque nós podemos tratar imagens no photoshop, clarear aqui, colorir ali. Esses recursos existiam há tempos, manualmente. Colorir negativo, aumentar exposição. O próprio ato de "recortar" uma imagem tridimensional e torná-la bidimensional é uma alteração da realidade.
A realidade não existe. Cada pessoa enxerga de um modo, cada animal percebe cor, forma e movimento de uma forma específica. Não existe um mundo e pronto. Cada um de nós percebe o mundo de uma forma. E traduzir isso para imagens é um exercício delicioso.

O que me incomoda é o rumo das câmeras digitais automáticas. São recursos automáticos cada dia mais ridículos. Quem disse que boa foto é aquela com um sorriso? Agora as câmeras detectam o rosto das pessoas e disparam a foto no momento do sorriso. Fotos espontâneas? Fotos de choro? Fotos de momentos reais que negam essa idéia de que viver é apenas sorrir. Para elas, abro um sorriso forçado...
Os amadores terão fotos sempre iguais. Um belo sorriso xis. Será um recurso escuso para valorizar a fotografia profissional?
Não sei. Mas uma eternidade de fotos de sorrisos amarelos me trazem uma ponta de melancolia. Quantas vezes ver suas fotos é um ato de nostalgia, uma forma de mexer nas lembranças? Ver um momento tristonho do passado pode trazer um certo conforto, saber que dias como aquele já existiram. E que dias melhores virão.
Com essa câmera do sorriso, a grama do vizinho será sempre mais verde, a grama do passado sempre brilhante, e quando você – humano – estiver meio melancólico, terá que apelar para o fundo da memória, tentando se lembrar daqueles dias sem-sorriso, aqueles não-registrados... E seus bisnetos acharão que você viveu a melhor época de toda a humanidade. Sempre sorrindo. Um sorriso amarelo e sem-graça.